segunda-feira, 16 de maio de 2011

Memórias de Cristina

Olá pessoas
Pedi que Cristina compartilhasse parte de suas memórias com a turma. Ela topou e enviou o texto abaixo. Espero que gostem.
abrs, Leandro



Dia 25 de abril de 2011.

Mesa redonda e debate de filme no auditório do PAF-I, com a participação de professores de Estudos da Contemporaneidade e alunos dos BIS.


Apresentação do filme “Utopia e Barbárie”, de Silvio Tendler. A continuação do estabelecimento de novas descontinuidades dentro do componente “Estudos da Contemporaneidade”. O estudo das características da Contemporaneidade como plataforma para o “Estudo das Culturas”. O contexto em que cada indivíduo situa a História e a sua história. Conceito e apropriação.
O filme aborda 50 anos de História em 120 minutos. Faz uma viagem das bombas atômicas às micro-políticas atuais. Apresenta imagens das barbáries da Segunda Guerra Mundial, das atrocidades da Guerra do Vietnã, de Che Guevara e da Revolução Cubana, das forças de repressão da Ditadura Militar brasileira e seu envolvimento com as táticas de tortura dos Estados Unidos, a Ditadura que elegeu Pinochet no Chile, o consumo, a luta de classes no Brasil e o sindicalismo, a Operação Condor, a Perestróica, o Apartheid, o Hamas, o conflito entre judeus e palestinos, e das utopias com a queda do muro de Berlim, a Primavera de Praga, a luta anticolonialista da Argélia, a Nova Constituição Brasileira, o movimento das Diretas Já, a ascensão do operário à Presidência da república Federativa do Brasil.
O sonho acabou. Segundo Adorno, a barbárie “é algo muito simples, ou seja, que, estando a civilização no mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontram atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização — e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás, uma tendência imanente que a caracteriza”. Como a utopia, é lugar nenhum, ela é também o espaço para o sonho, e como sonho, ela nunca acabará. Hoje, os “espaços de exercício da utopia são a internet, os fóruns mundiais, as mídias alternativas. O tempo-espaço das intervenções diárias. Parafraseando Kim Bartley e Donnacha O’Briain, “A revolução não será televisionada”.
A cena que mais me marcou no filme foi a da morte do poeta Pablo Neruda. É verdade, a História é aferida de forma linear – datas, acontecimentos, atores envolvidos. Mas, a estrutura fragmentada do filme, fez emergir os fragmentos da minha própria história. Eu me lembrei de ver pela televisão os “guardas” e sua cavalaria sobre os militantes da Avenida Rio Branco, e do silêncio que fora recomendado em casa; do pai de um amigo de família pacifista que comprou uma arma para buscar o filho detido nos porões do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna, o DOI-CODI, e que teve a “sorte” de tê-lo de volta jogado na porta de casa, apenas de cabelo cortado, sem as unhas das mãos e dos pés, com hematomas generalizados, mas que sobrevivera porque a mãe era uma pneumologista que salvara a filha de um oficial de alta patente. A lembrança de “todos juntos vamos, pra frente Brasil, salve a Seleção”, muito comemorada em casa, era uma perspectiva dolorosa frente à idéia de qual jogo eu estaria participando agora sem me dar conta? Naquela época, estudante do antigo ginásio, a nossa maior rebeldia fora colocar chiclete na cadeira da nova professora de “Moral e Cívica”, que substituíra sem nenhuma explicação a professora de História. Já com 23 anos, participei de um Workshop do Augusto Boal onde ele reunira mais de duzentas pessoas que experimentavam o seu “Teatro do Oprimido”. Nós nos experimentávamos. Eu caminhava com um chalé palestino envolto no pescoço e uma camiseta com a foto do Yasser Arafat, quando um sujeito judeu, na Praia de Copacabana, bloqueou ameaçadoramente a minha passagem, e me disse que eu não entendia nada sobre aquilo. Lá pelas tantas, uma das reuniões de fundação do PT aconteceu na casa-república que eu morava com outros amigos. Benedita da Silva estava lá com outros “utopistas”. Mais tarde, eu não encontraria nenhum traço de semelhança entre aquela senhora sentada ao meu lado na sala e a governadora Benedita Sousa da Silva Sampaio, do RJ. Obviamente éramos petistas, éramos pelos trabalhadores. Líamos João Cabral de Mello Neto, o Capital, Germinal, assistíamos aos filmes de Fassbinder, Jean Genet, Ingmar de Bergman, e relatos de presos políticos. Quantos comícios na Cinelândia, a passeata pelas “Diretas Já”. Fazer “Morangos Mofados”, no Teatro Cacilda Becker, para Caio Fernando Abreu na platéia, foi emocionante. Não poder evitar a morte de Ana Cristina César e nem seu (também nosso) suicídio, por se sentir emparedada, foi doloroso. Assistir ao filme foi trazer de volta um recorte da minha vida que estava totalmente submerso, inteiramente esquecido. A derrota de Lula para Collor, e a foto dele de corpo inteiro estampada na capa do Jornal do Brasil era a mostra da face reacionária e burguesa do Brasil, e, sobretudo, do RJ, que lhe dera a vitória. Collor espoliou a Nação e fez ruir o sonho da minha avó de comprar sua casa. Fui para Alemanha. Lá chegando fiz três experiências significativas: a da política das fronteiras, a do racismo e a da xenofobia. Descobri que os alemães dividiam o mundo entre os alemães, os americanos e os demais. Na chegada do meu vôo, fui a única passageira detida no aeroporto de Munique – eles me perguntaram se eu era árabe – isso em 1992. Seis policiais me cercaram, analisaram o dinheiro que eu carregava, pediram o endereço aonde eu me dirigia para checar a informação. Lá pelas tantas percebi que os guardas assistiam TV na sala ao lado, e não vinha ninguém para me liberar. Então, eu me liberei. Saí e ninguém disse nada. O pequeno interrogatório havia terminado. Não sem marcas. Com Collor, a barbárie da ditadura aparecia mais perversa. Como na foto da página inteira. Para mim, “aquele sonho” havia acabado, e não havia nenhum outro para sonhar. E, aos poucos, de turista eu fui me transformando em estrangeira. Os efeitos ainda estão por aqui, por aí. Mas, “esse mundo tem que reparar-se”. Aí vem a professora Ângela Franco e fala daquele vazio a partir do fim das duas coisas. Pois é. Então alguém sabia traduzir aquela sensação de estranhamento sentida nos últimos dez anos. Vem você e diz que não podemos seguir a lógica da simplificação, “aquilo tudo” foi real. Pois é. Se ao menos eu lembrasse os nomes de todas aquelas pessoas - pela utopia ou pela barbárie – a mulher que se pergunta: “Qual o sentido de eu ter escapado (da bomba atômica)?”, A. Gitai, Amira Haas, Fernando Solanas, Francesco Rossi, Augusto Boal, general Giap, Ho Chi Minh, Mao Tsé Tung, Takao Amano, Eduardo Galeano, Juan Bosch, Camilo torres, Gianni Váttomo, René Scherer, Franklin Martins, Ottoni Fernandes Jr., Mario Alves, Ferreira Gullar, Marlene França, Alvaro Caldas, Rose Nogueira, Alvares Azevedo, Nsaynd Barret, Soledad Barret, Gilo Potencorvo, Bruno Muel, Patrice Lumumba, Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Amir Hadad, Jorge Amado, Francisco Julião, Cacá Diegues, Coronel Camaño, Martin Luther King, Muhamed ali, Donal Cox, Angela Davis, Mauro Santayana, Jean Marc salmon, Dilma roussef, Paulo Leminski, Carlos Chagas, Sergio Fleury, Pedro Aleixo, Sergio Santeiro, Luis Carlos Maciel, Zé Celso Martinez, Joaquim Pedro de Andrade, Shizuo Ozawa, Daniel Vigletti, José Maria de Araújo, Garrastazu Médice, João Goulart, Pinochet, Allende, Fidel Castro, Ana rosa Kusinski, Maria do Carmo, Patricia Bruno, Leonel Brizolla, Vladimir Palmeira, Lula, Walter Rauff, Ronald Reagan, Margareth Tatcher, Mikail Gorbachev, Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, Alberto Dines, Evandro Teixeira, Hugo Arévallo, Xuan Phong, Gregório Bezerra, Ricardo Caratini, Carlos Prestes, Macarena Gellmann, Roger Rodrigues, Samuel Blaxen, Jair Khriske, Caio Fernando Abreu, Lyda Monteiro da Silva, Paulo Henrique Amorin, Joelmir Betting, Jacob gorender, Pol Pot, Denis Arcand, Vú Khoan, Yael Larer, Uri Avnery, Mohamed Alahad, Muner Shaban, Zacharia Zubeidi, Walter Benjamin, Leandro Konder, Apolônio de Carvalho... Sei que faltaram muitos.
Eu não tinha o que dizer, ou discutir após a exibição desse filme. E não sentia mais a menor vontade de estar na sala. A explanação do professor Umbelino, que parecia mais identificado com a proposta de cinema do Glauber, e que de certa forma, como cineasta, desqualificava o trabalho do Tendler, somada às questões que se seguiram, eram para mim, antítese demais naquela hora. Fiquei com vontade de rever o filme. 

OBRIGADA ÂNGELA, POR TRADUZIR O VAZIO.

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