quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Mais Medellin

16/10/2006

Medellín passou de capital da violência a laboratório da paz

Desde o início dos anos 90, homicídios caíram de 360 por 100 mil habitantes para 39
Governos nacional, estadual e municipal se uniram contra o narcotráfico, os paramilitares e as guerrilhas, entre elas Farc e ELN

Cantora e professora de música para crianças, Patrícia Cardona, uma ruiva de cabelos encaracolados e olhos esverdeados, engoliu, na manhã de 30 de setembro de 2002, uma série de grossas cápsulas de heroína, meticulosamente embrulhadas com películas de borracha para que não abrissem em seu estômago. Preparava-se para duas experiências inéditas e simultâneas em sua vida: conhecer Nova York e entrar para o narcotráfico. Receberia cerca de US$ 3 mil pela missão.

Antes de embarcar, foi flagrada e teve de cumprir 26 meses numa prisão feminina. "Eu tremia tanto que, no meu desespero, pensei que as cápsulas iriam se romper." Até então, ela estava cheia de fantasias românticas. Iria andar pelas ruas no outono de Nova York, com seus parques de folhas avermelhadas pelo chão e clima ameno, ao lado de seu namorado, que, como ela, carregava, naquele dia, a droga escondida no corpo. E que também foi preso.

Cardona continuou a ser professora na prisão. Recebia todas as semanas estudantes de escolas de Medellín e contava-lhes sobre o risco de entrar para o narcotráfico. No final, para não perder o hábito, acabava tocando e cantando músicas que compôs sobre suas desventuras. Desde a prisão, acabou o namoro e, até agora, não se dispôs a uma nova relação. "Uma coisa é um pai, uma mãe ou um policial falar sobre o risco das drogas. Outra, muita diferente, são meninos e meninas verem e ouvirem alguém dando seu próprio testemunho dentro da cadeia." Ela já está livre, mas continua com suas palestras cantadas e sobrevive ensinando violão e flauta para crianças.

Capital mundial

As palestras de Cardona aos jovens, a maioria deles de escolas públicas, eventuais candidatos a "mulas", nasceram com o programa "Delinqüir não vale a pena" e integram um dos mais extraordinários exemplos de ofensivas contra a violência de que se tem notícia.

No início dos anos 1990, a taxa de homicídio de Medellín, segunda maior cidade colombiana, com 1,8 milhão de habitantes -a região metropolitana tem 2,8 milhões-, era de 360 por 100 mil habitantes. Entende-se o que significa isso comparando com a cidade de São Paulo, onde ela é de 25 por 100 mil, ou seja, 14 vezes menor. Não havia nenhum lugar do planeta, mesmo os conflagrados pela mais feroz das guerras, que remotamente se aproximasse da violência daquela cidade colombiana, centro de operação do narcotráfico e seus assassinos profissionais mesclando-se diferentes organizações guerrilheiras de esquerda, grupos paramilitares e gangues de adolescentes. Daí ter ganho o nada honorífico título de "capital mundial da violência".

Apenas recentemente, estudiosos de várias partes do mundo, especialmente do Terceiro Mundo, estão chegando para tentar entender como eles conseguiram baixar de 360 para 39 homicídios por 100 mil habitantes -índice ainda elevado, mas substancialmente menor e caindo ano a ano. É uma queda de quase 90%, notadamente veloz nos últimos três anos. "Medellín é um dos melhores laboratórios de paz de todo o mundo", afirma Martha Laverde, colombiana, especialista em educação do Banco Mundial.

O exemplo de Nova York

É um caso bem mais profundo do que o ocorrido em Nova York, onde um ex-prefeito (Rudolph Giulianni) chegou a ser cogitado como ganhador do Nobel da Paz pela redução dos índices de homicídio, atualmente em 7 por 100 mil habitantes. Além de Medellín ter a multiplicidade de fontes de violência de narcotraficantes, gangues de jovens, guerrilheiros e paramilitares, há os indicadores sociais, típicos latino-americanos. A taxa de pobreza é de 40% e o desemprego entre jovens, nos bairros mais desolados, chega a 70%. Lá estão as incubadoras para a formação de assassinos profissionais, conhecidos como "sicários", e para as "mulas", como a cantora Cardona, dispostas a traficar a droga para Estados Unidos e Europa.

A ofensiva dos governos nacional, estadual e municipal resultou no ataque ao narcotráfico, onde imperava o mítico Pablo Escobar, na desmobilização dos paramilitares, no enfraquecimento das guerrilhas das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e da ELN (Exército de Libertação Nacional). "Se tivéssemos tanta descoordenação entre as forças policiais como vocês, no Brasil, já teríamos desaparecido do mapa", diz o jornalista Alonso Salazar, impressionado com os debates e as disputas que testemunhou, entre autoridades brasileiras, por causa do PCC.

Jornalista investigativo, seu tema era o submundo de Medellín, o que o levou a acompanhar de perto os movimentos dos principais personagens da cidade. "Aprendi como funcionava a hierarquia do crime, especialmente nas favelas." Foi chamado para ser um dos principais assessores da prefeitura, onde, com seu conhecimento de repórter, ajudou a articular um plano de segurança -e, agora, se candidata para ser prefeito, no próximo ano.

Comuna 13

O símbolo máximo do caos era a Comuna 13 -um conglomerado de 25 favelas que se espalhavam pelas montanhas que cercam Medellín e produziam o grosso da violência. Não havia poder público e, para subir lá, só com autorização. Numa operação de guerra, o Exército ocupou a região e instalou bases militares. Puderam, então, chegar educadores, assistentes sociais e policiais comunitários.

Com o policiamento comunitário, as pessoas se sentiram mais confortáveis para denunciar os matadores, o que diminuiu a sensação de impunidade. Não apenas se treinaram melhor os policiais, mas se capacitou a comunidade sobre como lidar com a questão da segurança. Surgiram, voluntariamente, os "vigilantes do bairro", cuja missão é apenas informar as autoridades sobre movimentos suspeitos.

Disseminou-se a figura do mediador de conflito: alguém de respeito no bairro apto a intermediar disputas entre moradores. Disputas que, numa situação "normal", acabariam em pancadaria. Neste ambiente, diminuíram-se as resistências contra a campanha de desarmamento. "O essencial é que eles estão combinando, na medida certa, ações repressivas com preventivas", analisa Laverde, do Banco Mundial.

Jovens envolvidos na marginalidade foram convidados a trabalhar como educadores e recebem um salário para manter a ordem na cidade. Jhon Albeiro Yalí já tinha passado um ano na prisão por causa da guerra de gangues. Hoje, ele, uniformizado de chapéu e camiseta azul, orienta pedestres a se prevenirem de acidentes de trânsito. "Sem isso, eu não teria perspectiva", orgulha-se. "Precisávamos trabalhar a auto-estima da população", diz Alonso Salazar. "Achávamos que a violência era, além de um reflexo da impunidade, uma indicação da falta de auto-respeito."Muitas vezes, eram os grupos marginais que ofereciam proteção e assistência social, disfarçando-se de poder público.

A força da bibliotecaAlém das medidas repressivas, preventivas e educacionais, implementaram-se reformas urbanas nos bairros mais pobres, alguns deles nas montanhas, totalmente isolados. Construíram-se escadas, promoveu-se a coleta do lixo, escolas foram ampliadas, abriram centros de saúde e ofereceu-se um sistema de transporte -em alguns casos, de teleférico.Para acompanhar, em detalhes, a evolução de cada indicador, nasceu um entidade civil chamada "Como Vamos Medellín", cujos resultados são amplamente divulgados pela mídia. É uma espécie de termômetro para medir qualidade de vida, em que se contabilizam desde seqüestros, roubos, furtos até evasão escolar, gravidez precoce, renda dos trabalhadores e desemprego.

Neste momento, estão construindo numa das regiões mais pobres uma imensa biblioteca, em meio ao verde para servir de ponto de encontro tanto quanto de leitura. A idéia é que, em cada bairro, o principal centro seja uma biblioteca. "Achamos que quem gosta de ler não gosta de matar", aposta Salazar.

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