sábado, 10 de abril de 2010

Lembrando de nossas aulas II

LIVROS

Crítica/ "Freud Obras Completas - Volumes 10, 12 e 14"

Edição preserva qualidade de Freud
Tradução de Paulo César de Souza, feita diretamente do alemão, revela o talento literário do criador da psicanálise

LUÍS CARLOS MENEZES
ESPECIAL PARA A FOLHA

A obra de Freud caiu em domínio público em janeiro, ou seja, pode agora ser traduzida e publicada por qualquer editora interessada. Paulo César de Souza, premiado duas vezes por suas traduções de Brecht e de grande parte da obra de Nietzsche, alia a competência do germanista reconhecido a um grande sonho pessoal: o desafio de traduzir a obra de Freud.
Nesta feliz conjuntura, a "nossa clara língua majestosa" (expressão de Fernando Pessoa citada pelo tradutor em seu prefácio), depois de tanto penar com traduções, em geral muito ruins, feitas do inglês, do francês e do espanhol, começa agora a acolher nela a escrita freudiana traduzida diretamente do alemão.
Nos últimos anos, alguns volumes já haviam sido publicados pela editora Imago, detentora dos direitos autorais para o português, traduzidos por uma equipe sob a direção de Luiz Alberto Hanns.
Aqui, no entanto, vou me ater a alguns comentários sobre as "Obras Completas", em vinte volumes, traduzida por Paulo César, dos quais três acabam de ser publicados, com a previsão de mais dois ainda para este ano. Oportunidades não faltarão para se falar também da tradução sob a direção de L.A. Hanns, possibilidades de leitura que, em sua diversidade, vão reavivar o estudo do pensamento da obra de Freud, viga-mestra da psicanálise.
Ambas estão sendo feitas do alemão e por pessoas que têm a medida da importância da obra, da extrema complexidade das ideias que nela são desenvolvidas. Portanto, podemos considerar que ambas são traduções confiáveis, o que é uma fato novo de inestimável importância para quem lê ou estuda Freud em português.
Com a tradução de Paulo César de Souza, parece que não teremos nenhum risco de tropeçar em neologismos ou em artefatos, como palavras marcadas aqui e ali com signos pré-convencionados. Diante das escolhas mais difíceis, Paulo César opta por palavras conhecidas da língua, de maneira que a prosa flui agradavelmente.
Podemos apostar que enfim vamos ter a oportunidade de conhecer, de saborear, o tão falado Freud escritor, este "mestre da prosa alemã" contemplado com o prêmio Göethe em 1930, e que conduz o leitor com simplicidade, elegância e grande versatilidade de estilo pelos labirintos de um pensamento infatigável, irriquieto, impelido pelo esforço em cercar um objeto de estudo por natureza fugidio; pego numa formulação, ele já requer novos esforços para ser reencontrado em outras perspectivas.

"Agieren"
A limitação estará em poder dar conta das derrapagens, dos excessos com os quais se depara a psicanálise. Vejamos um exemplo tirado do artigo "A Dinâmica da Transferência", de 1912, e que se encontra no primeiro volume da série agora publicada.
No último parágrafo, Freud, fazendo uma aproximação da transferência com os sonhos, destaca a dificuldade em trazer "os impulsos inconscientes" para o terreno da lembrança, ou seja, terreno no qual o paciente pudesse reconhecê-los na dimensão de sua própria experiência e dos seus desejos, de sua história. Ao contrário, estes tendem "a reproduzir-se, de acordo com a atemporalidade e a capacidade de alucinação do inconsciente".
Ele (o paciente) "atribui realidade e atualidade aos produtos do despertar de seus impulsos inconscientes; ele quer dar corpo a suas paixões, ...". Em nota de rodapé, o tradutor indica que "dar corpo" corresponde a "agieren" no texto de Freud, e fornece algumas opções de tradução usadas em outras línguas, em quase todas a paixão sendo posta em ação.
Embora a palavra "paixão" já designe uma condição de grande intensidade, próxima de desencadear atos desmedidos, Freud neste contexto precisou dizer que, nesta condição transferencial, a exacerbação passional leva a ações, as paixões são agidas, atuadas. A clínica pós-freudiana reconheceu neste poder de "agieren", por vezes silencioso, sobre o psiquismo do psicanalista uma importância decisiva.
Ora, ao traduzir o "agieren" ... suas paixões" por "dar corpo a elas", o tradutor atenua enormemente a formulação de que o autor necessita para dar a medida do que está descrevendo e do desafio técnico que representa e que vai estar no centro de suas preocupações. "Ele quer dar corpo a suas paixões" respeita o modo de falar do leitor, mas amortece um excesso transferencial, que corre o risco de tornar-se incontrolável, para a qual o psicanalista está apontando.

Desafios clínicos
O mesmo na escolha de instinto em vez de pulsão para traduzir a palavra "trieb" -na obra de Freud um conceito essencial. Opção que de novo protege o texto, este não sofre com um neologismo, mas perde a especificidade que Freud lhe dá e que lhe é indispensável: o seu caráter de compulsão, presente no verbo compelir (obrigar, forçar, coagir, constranger, impelir, empurrar).
Mas, isto dito, reconheçamos que o tradutor fez a sua parte admiravelmente; cabe aos leitores e estudiosos da obra, principalmente quando forem psicanalistas, fazer o trabalho de leitura e trazer o texto para o miolo de onde vêm: os desafios da prática clínica.

LUÍS CARLOS MENEZES é psicanalista e psiquiatra, formado pela Associação Psicanalítica da França (APF) e membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do Instituto Sedes Sapientiae.


FREUD (1911-1913) "O CASO SCHREBER" E OUTROS TEXTOS - OBRAS COMPLETAS VOLUME 10

Autor: Sigmund Freud
Tradução: Paulo César de Souza
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 50 (378 págs.)
Avaliação: ótimo

FREUD (1914-1916) ENSAIOS DE METAPSICOLOGIA E OUTROS TEXTOS - OBRAS COMPLETAS VOLUME 12

Quanto: R$ 48 (314 págs.)
Avaliação: ótimo

FREUD (1917-1920) "O HOMEM DOS LOBOS" E OUTROS TEXTOS - OBRAS COMPLETAS VOLUME 14

Quanto: R$ 52 (434 págs.)
Avaliação: ótimo

PS: o tradutor é baiano e mora em SSA.

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