segunda-feira, 19 de abril de 2010

Para pensar

No carrossel da pedofilia (entrevista com Richard Parker*)

Jornal O Estado de São Paulo - 7 de setembro de 2008.

Mônica Manir

A Operação Carrossel teve duas rodadas até agora. Na primeira, deflagrada em dezembro de 2007, a Polícia Federal cumpriu 102 mandados de busca e apreensão, e três pessoas foram presas, acusadas de
pedofilia. Na segunda, desencadeada em parceria com a CPI da Pedofilia, a PF juntou farta quantidade de pornografia infantil em 113 endereços, de onde o material partia via internet. E mais quatro pessoas, pegas em flagrante, foram detidas. Todo esse arquivo de imagens com crianças e adolescentes entre 2 e 17 anos está sendo compartilhado com pelo menos 70 países, onde milhares de pedófilos foram rastreados a partir das investigações feitas no Brasil desde a primeira Carrossel.

Se o assunto pode causar vertigem, no antropólogo Richard Parker a reação é de pé atrás. Não que ele seja contra esse tipo de cooperação internacional, ainda mais diante de questão que afeta tantos indefesos. "Mas acho importante não cair no pânico moral, na caça às bruxas, porque há o risco de se esquecer exatamente desses indefesos." Diretor presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar da Aids desde a morte de Betinho, seu fundador, e co-coordenador do Observatório de Políticas de Sexualidade, Richard Parker deu esta entrevista de Nova York, onde lecionará neste outono. Em outubro volta ao Brasil para continuar na empreitada que iniciou há mais de 20 anos: a luta pelos direitos sexuais, que começou com o movimento LGBT e tem sido engordada nos últimos tempos com o tráfico de mulheres e a própria pedofilia.

O conceito de pedofilia mudou com o tempo?

Não há dúvida de que mudou. A pedofilia é um conceito construído por especialistas, um guarda-chuva incluindo práticas que, em outras culturas e outros tempos, não necessariamente eram entendidas como
pedófilas. Na Grécia antiga, por exemplo, as relações sexuais entre adolescentes e adultos, principalmente entre homens, consistiam num tipo de tutela por parte do mais velho, quase de um professor
transmitindo orientações que poderiam ajudar a se desenvolver em todos os sentidos. Outro exemplo, mais antropológico, são as relações sexuais entre rapazes e homens adultos em diversas sociedades do
Pacífico como ritual de transição da juventude para a vida adulta. Havia a idéia ali de que a transmissão de sêmen era a transmissão da essência da masculinidade. Tanto uma quanto outra são construções da
sexualidade que faziam sentido naqueles contextos, algo completamente distinto do que costuma ocorrer na nossa sociedade, que não tem esse tipo de prática nem crença.

Ainda existem rituais assim no mundo?

Sim, vários, e eu poderia me estender por horas falando de todos os documentos etnográficos que temos da África, da Ásia, da América Latina. Há diversos rituais que têm a ver com a construção da
masculinidade, às vezes envolvendo relações sexuais com homens mais velhos, às vezes não. A construção da masculinidade é uma preocupação social e cultural de quase todas as sociedades. Como em muitas delas
as mulheres têm a responsabilidade maior de cuidar das crianças e dos jovens, são elas que educam e transmitem as crenças sociais e os comportamentos mais apropriados tanto para meninas como para meninos.
No caso das meninas, esses ensinamentos se prolongam vida afora, já que elas continuam lidando com as mães e com outras parentes. Além disso, as mulheres têm indicadores ou representações simbólicas
corporais claras, como o desenvolvimento dos seios e a menstruação, que ajudam a simbolizar a maturidade.

Como ocorre com os homens?

É visto como mais difícil se transformar em homem porque os garotos têm de ser arrancados do contexto feminino para construir uma masculinidade adulta. Repare como acontece hoje em muitas sociedades
ocidentais. Há uma preocupação grande, menos ritualizada, mas há, de os homens adultos educarem os rapazes para que se tornem homens "corretamente" dentro da ótica social. Ensinam a jogar futebol, a
falar, a andar e ainda a ter a primeira relação sexual com uma prostituta. E o rito do bordel. Judicialmente, isso pode cair na classificação de pedofilia, mas certamente não é entendido assim pelo
pai que leva o filho muito jovem ao bordel, nem pelo filho que está sendo educado dessa maneira, por vezes com muito prazer.

Quando a pedofilia passou a ser tão fortemente condenada?

De meados do século 19 até 1900, mais ou menos, a sexualidade virou objeto de estudo científico. Até então a religião regia a moralidade em torno do assunto. Ela continua sendo uma das mais importantes
fontes de valores morais com relação à sexualidade, mas a ciência, a psiquiatria e a sexologia surgem durante esse período, num processo muito intenso de classificar práticas sexuais como normais e anormais.
É nesse período que nasce o conceito de homossexualidade. Existiam relações entre pessoas do mesmo sexo, mas não existia o conceito. A categoria de homo, inclusive, surge antes da de hétero para nomear
esse suposto desvio. Já a categoria de pedofilia faz parte desse processo de construção e classificação científica de maneira conturbada. A antropóloga feminista Gayle Rubin argumenta que, do
mesmo modo que existe uma hierarquia de gênero que normalmente dá poder aos homens, existe uma hierarquia da sexualidade, na qual algumas manifestações da diversidade sexual humana são avaliadas pela
ciência e pela religião como positivas ou negativas. De um lado tem o sexo bom; do outro, o ruim. A pedofilia, juntamente com o masoquismo, está no ponto mais baixo dessa hierarquia. Veja a avaliação que as
pessoas ao redor fazem dela. Não há nada visto como tão condenável, tão questionável quanto as relações pedofilicas de adultos que se aproveitam da falta de defesa de jovens e crianças para tomar
vantagens sexuais.

A pedofilia é estigmatizada porque corrompe a inocência?

A grande razão da sua estigmatização é justamente a pressuposta inocência da criança e do jovem. As idéias de inocência que temos de ambos em relação à sexualidade ainda são pouco compreendidas,
precisamos entender melhor isso. A minha preocupação é muito menor com a inocência do que com a desigualdade de poder. É quando o adulto força outra pessoa a entrar em relações que eventualmente ela não queira ou não tem capacidade de administrar psicologicamente. Uma das dimensões da pedofilia menos estudada é aquela que acontece dentro de casa, entre parentes. São casos assustadores, obviamente, mas temos de abrir essa discussão. O pânico moral fecha o diálogo, em vez de aprofundar. Isso me preocupa quando escuto os discursos que ouço aí ou aqui, nos EUA, que em termos de moralismo é sempre muito pior do que no Brasil.

O Brasil está em quarto lugar no consumo mundial de material de pedofilia. Essa posição no ranking tem a ver com erotização precoce?

Não é de hoje que se tem preocupação com a sexualização precoce no Brasil. Lendo clássicos sobre a história do povo brasileiro, escritos por Gilberto Freyre e outros, você não verá a palavra "pedofilia", mas
perceberá como a sexualidade acontece cedo na vida de crianças e adolescentes desde os primórdios. Hoje, a erotização é estimulada na mídia, na música, na publicidade. Ao mesmo tempo, há uma série de restrições dizendo ao jovem que ele não tem direito a decidir sobre suas próprias relações sexuais. Os coitados são os mais prejudicados porque recebem recados contraditórios sobre como se comportar. Acho, porém, que o fator primordial nesse quarto lugar do Brasil é a pessoa usar seu poder para passar por cima do direito do outro. Você vê isso no trânsito e em vários aspectos do cotidiano. O adulto se acha com poder em todos os sentidos.

Em que medida o grande acesso do brasileiro à internet pode ter ajudado na proliferação da pornografia infantil?

O poder dos mais velhos se junta à era da reprodução digital, que permite vida nova à pornografia. Quando as pessoas não tinham essas facilidades em casa, existia um comércio pornográfico diferente. E não
se pode esquecer da prostituição infantil, que em alguns lugares se organiza à moda antiga, mas que também tem uma vivência pela internet, uma dimensão mais moderna. À medida que a exploração econômica ou
física infelizmente aparece enraizada na sociedade, essas tecnologias, que tem grande possibilidade de liberar as pessoas em outros contextos, facilitam a opressão.

Pedofilia pode ser entendida como doença? A castração química, com a injeção de hormônios femininos para diminuir o desejo sexual de pedófilos, já foi sugerida como alternativa de tratamento.

Eu me preocupo com supostas curas nesse sentido. A história para tratamento de, entre aspas, doenças de comportamento sexual é lamentável. Em nome de curar supostas doenças, grandes violências têm sido praticadas sem resultado. Há pouco se falava em cura da homossexualidade... Não quero com isso fazer apologia à pedofilia. A imposição de um poder para forçar outros a fazer o que não querem é inaceitável. Agora, a maneira de trabalhar essa situação deve passar não pela medicalização, mas pelo respeito aos direitos humanos.

A atração sexual por crianças pode ser classificada como orientação sexual, como pregam alguns especialistas em sexualidade?

Essa conceitualização não nos ajuda muito. Já "é difícil trabalhar questões de orientação sexual dentro do seu uso mais comum, ou seja, tratar o mesmo sexo ou o sexo oposto como objeto do desejo. Ao se ampliar esse conceito para o desejo por crianças e jovens, só se confunde mais um campo já bastante arenoso conceitualmente.

Em visita aos EUA, o papa mostrou preocupação com os casos de pedofilia na Igreja. Essa discussão foi adiante no país?

Não há dúvida de que há um grande escândalo na Igreja, sobretudo nos EUA, mas em outros lugares também. A Igreja tem escondido a incidência de relações entre padres e jovens de uma maneira absolutamente inaceitável e hipócrita. Ela nega a necessidade de abrir a discussão intramuros. Sua opção de tapar o sol com a peneira é tão preocupante quanto a incidência de relações pedófilas entre os religiosos.

Existem mais pedófilos-do que pedófilas?

Certamente. Acho que é um reflexo da dinâmica de gênero na sociedade, do suposto direito da masculinidade de dominar. Mas também acho que existe uma subnotificação de mulheres que utilizam seu poder de maioridade para eventualmente cometer atos menos expostos. Para um jovem rapaz, assumir que uma mulher poderia forçá-lo a fazer algo que não gostaria de fazer no campo da sexualidade pode violar sua
identidade como homem. É outra área sobre a qual falta uma compreensão maior.

Alguns políticos propuseram uma campanha nacional contra a pedofilia. Seria uma alternativa eficaz para combatê-la?

Não sei os detalhes da campanha, é muito difícil dizer se seria boa ou ruim. O que percebo é que alguns preferem o histerismo. Acho necessária uma discussão pública ampla, tentando entender oo que é esse fenômeno que está aí. Estamos num terreno em que as pessoas falam coisas que não conhecem em nome dos indefesos. É boa hora para não recorrer a julgamentos e implementar programas e políticas públicas
responsáveis visando realmente a defender direitos que podem estar sendo violados.


* Richard Parker é professor Adjunto no Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professor titular e chefe do Department of Sociomedical Sciences e diretor do Center for Gender, Sexuality and Health na Mailman School of Public Health da Universidade de Columbia em Nova Iorque, além de Voluntário da Associação Brasileira Interdisciplinar da Aids.

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