terça-feira, 3 de março de 2009

Primeiro texto

Pessoas, segue abaixo o texto de nossa aula de segunda. Não foi possível scanear.
Leiam e reflitam sobre o assunto. Levem dúvidas, questões e casos para serem discutidos em sala. Um abraço, Leandro


5.1 Experiência e comunicação

Comunicação e experiência


Durante da Guerra do Golfo, o público politicamente correto mostrou-se chocado com a transformação hight tech do conflito num autêntico videogame transmitido, ao vivo, para todo o planeta. Hipocrisia à parte, isto pode ter servido para mostrar, de uma vez por todas, que a guerra é também uma forma de comunicação e, por essa razão, repousa no mesmo jogo de sentido que torna perceptíveis, compreensíveis e até mesmo aceitáveis os mais diversos acontecimentos que compõem o vasto repertório da experiência humana.

No passado, só éramos atingidos por um conflito remoto, através de um relato oral ou escrito; hoje, podemos compartilhar a visão que se tem da cabine de comando dos bombardeios envolvidos no combate. Temos, agora, um informação mais detalhada das operações de guerra e os acontecimentos nos atingem mais veloz e intensamente. De qualquer modo, tanto num caso como no outro, estes fatos de que tomamos conhecimento vêm acrescentar-se ao nosso repertório anterior, incorporando-se ao patrimônio do que consideramos “nossa experiência”.

No entanto, quando pergunto a meus alunos se a Guerra do Golfo ou a invasão do Iraque faz parte da sua experiência, a perplexidade que surpreendo em seus semblantes me sugere que eles consideram, tacitamente, esse tipo de “acontecimento mediático”, por princípio, estranho à própria idéia de experiência mesmo que sejam forçados a admitir que tais fatos são compreensíveis e assimiláveis e, portanto, fazem sentido para eles, tanto quanto aqui que experimentam diretamente. A tradição que herdaram de seus pais – querendo ou não – os induz a considerarem como sua experiência apenas aqueles acontecimentos que ocorrer em sua vizinhança, possuem um “nome” e um sentido familiares e, em maior ou menor grau, “afetam” a sua experiência.

De um modo geral, sabemos que o sentido não é uma “coisa” dada, nem uma “idéia” arbitrária. Ao contrário, só há idéias e coisas, enquanto fazem sentido para nós. Na verdade, o “fazer sentido” é o modo de vigência próprio aos fenômenos que compõem a nossa experiência simbólica e com eles partilha a ambígua condição da instituição, isto é, de algo que é o resultado sempre provisório de um movimento instituinte, que a cada movimento se sedimenta numa referência instituída, sobre a qual agirá novamente esse impulso de expressão da experiência vivida, que nos conduz em direção ao outro e em direção ao futuro, à medida que projeta para além a seta da significação.

O que chamamos de “nossa experiência” é, pois, indissociável desta ação de significar pela qual atribuímos sentido, obedecendo, portanto, sua dinâmica circular. De fato, qualquer experiência singular é automaticamente conduzida ao campo constituído pelas experiências prévias, mas só se acrescenta efetivamente ao repertório típico desse campo se desvia da redundância e escapa ao estereótipo grupal, de modo a promover uma real transformação do “sujeito” que a vivencia.

Comunicação e subjetividade

O que, na experiência contemporânea, se encontra profundamente posto em questão é justamente a própria noção moderna de subjetividade, com seus atributos de permanência, autodeterminação, autonomia e auto-transparência. Os mecanismos e processos da atual comunicação mediática explicitam o caráter institucional da própria subjetividade, exibindo suas fissuras e suas recomposições frente aos movimentos de estrutura sócio-histórica de compreensão a que ela está sujeita. Eles contribuem, dessa forma, para questionar ainda mais o mito que essa época construiu em torno da noção de “liberdade”, explicitando a vinculação simbólica das formas de perceber, falar e atuar que se traduz numa disposição cultural identitária que é partilhada num determinado grupo como um padrão de referência comum para o conjunto das experiências de seus membros. Ao mesmo tempo, eles nos obrigam a admitir – apesar da insegurança em que isso nos possa lançar – que, mesmo a nossa experiência mais enraizada na tradição grupal é, hoje, sobredeterminada por um horizonte de sentido de caráter planetário.

Existir, ser-no-mundo, significa poder abrir-se a possibilidades. Mas o “possível” reflete uma condição simbólica prévia, capaz de acolher os acontecimentos de uma vida como fatos significativos. Operando como uma matriz de sentido, a tradição age – sobre nós e através de nós -, não só como um repertório de objetos e procedimentos, mas como uma estrutura inconsciente, assimilada através do longo adestramento que caracteriza o processo de socialização. O que cada um de nós designa como a “sua” experiência depende, portanto, do modo como recortamos aqueles acontecimentos de nossa existência atual, sobre o fundo latente, mas ativo, constituído pelo campo simbólico a que estamos vinculados.

O advento das formas atuais de comunicação apenas amplia e aprofunda esse campo, fazendo emergir claramente a condição perspectiva de toda a experiência e revelando o caráter “virtual” da realidade em que sempre estivemos imersos, posto que as ocorrências do mundo, da linguagem e da história só se tornam acessíveis, só “fazem sentido”, quando recolhidos por um logos instituído como padrão atuando silenciosamente por trás de nossos gestos e pensamentos.

A interação com – e através – dos media mostra claramente que a nossa sensibilidade opera com sentidos que ela não controla e que só existem para nós como possibilidades instituídas por um conjunto de práticas sociais convocadas por “sujeitos” que só se constituem, enquanto tais, ao acioná-las. Ao mesmo tempo, mostra que esta sensibilidade não é uma condição passiva de receptividade capaz apenas de captar a ocorrência das “coisas” simplesmente dadas de antemão, pois está claro que ela pode envolver processos de apreensão distintos, acionados quando solicitada por estímulos provenientes de diferentes meios. Dessa forma, a comunicação contemporânea mostra a relação intrínseca entre a experiência e os modos de significação, revelando, ao mesmo tempo, o caráter sócio-histórico e a dimensão poética – formadora e estruturadora – de nossa própria percepção do mundo sensível, posto que esse “mundo” com que nos deparamos em nossas vidas revela-se um ambiente continuamente transformado por nossa atuação mesma.

O que as formas atuais de comunicação não cessam de pôr em evidência é, portanto, o fato de que o vínculo social que efetivamente torna possíveis nossas ações, segundo um padrão de identidade coletiva, é a forma como partilhamos nossas experiências, em cada época e cada lugar, através dos modos e meios de significação disponíveis àquelas práticas expressivas que articulam nossa condição existencial de compreensão.

Comunicação e objetividade

Mas não é só no terreno dos princípios universais ou no âmbito do mais imediato senso comum que floresce esse desconforto diante dos fenômenos da comunicação contemporânea. Ele se desenvolve igualmente entre os teóricos da comunicação, cujas análises, apesar das diferenças de ênfase e recorte, geralmente silenciam sobre o papel dos media na formação e na transformação dos modos de significação que conferem sentido coletivo a nossas experiências.

Embevecidos com seus algoritmos formais ou embriagados por princípios de universalidade questionável, alguns desses sábios elegem os aspectos quantitativos da comunicação contemporânea como seu elemento específico, procurando estudar suas formas atuais apenas para compreender aspectos como a sua “importância”, o seu “alcance”, as suas “conseqüências”, a sua “reprodutibilidade técnica”, seu vínculo com a “indústria cultural”, sua dependência com relação à “cultura de massas” ou sua suposta capacidade de manipular política e ideologicamente a “opinião pública”.

A questão da comunicação mediática – conforme se apresentou, inicialmente, na sociologia americana da década de 1940 – talvez já contivesse, como vício de origem, um acento obviamente instrumental. Mas este viés foi também reforçado por concepções não-sociológicas, como as da teoria da informação e da semiótica, que sempre tenderam a submeter os processos mediáticos a um padrão de inteligibilidade fundado nas experiências de interação interpessoal.

Ao que tudo indica, essa subestimação do caráter específico das formas contemporâneas de comunicação revela uma certa nostalgia do diálogo direto, da presença viva e imediata do interlocutor, numa relação vis-à-vis, como se, nesse contexto, a própria língua não funcionasse como um médium. Se insistirmos em conceber a comunicação, no mundo contemporâneo, apenas como uma variante historicamente datada do eterno jogo entre diálogos e discursos, seremos naturalmente levados a crer que a situação atual das sociedades ocidentais é marcada pela “predominância dos discursos sobre os diálogos”. Da mesma forma, se encararmos o diálogo apenas como a síntese de informações novas a partir de informações disponíveis e acreditarmos que os discursos atingem a todos igualmente, não poderemos provavelmente escapar à conclusão de que, frente à redundância das informações que temos a nosso alcance, estaremos fadados a assistir passivamente à “decomposição do tecido social do ocidente”, caracterizada pela redução do verdadeiro diálogo à condição do simples feedback.

O mito da “idade de ouro” mediática

Tais concepções fazem com que tenhamos, inevitavelmente, na mais baixa conta as produções simbólicas da atualidade, uma vez que as avaliamos por um critério que, por não ser o da nossa época, lhes vira as costas. Por essa razão, devemos desconfiar seriamente dos diagnósticos pessimistas daqueles que escondem o seu temor diante da experiência viva da comunicação, sob o surrado disfarce da “objetividade” científica.

Como é que a extrapolação das condições da comunicação interpessoal para o âmbito da comunicação social – característica das “teorias da comunicação” – pode ser compreendida hoje como uma conseqüência quase natural do privilégio da expressão verbal no Ocidente, provavelmente associada à afirmação da identidade cultural de um tipo de comunidade – o Estado nacional – através da escrita alfabética e da imprensa. Se tal processo foi, num primeiro momento, justificável, ele se mostra, hoje, como algo francamente insustentável, uma vez que a comunicação mediática se dá não “aquém” ou “além”, mas através do horizonte lingüístico.

Todavia, não devemos substituir esse logocentrismo e essa atitude reativa frente aos media por uma apologia igualmente ingênua da “nova” comunicação, concebida, à maneira de Walter Benjamin, como a força instauradora de uma nova forma de percepção produzida pelo shock provocado pelas atuais técnicas de reprodução sobre a atividade do espectador. Se a sensibilidade atual passa por uma profunda transformação, isto não se deve apenas às mudanças históricas em sua condição empírica, mas ao fato mesmo de que ela nunca foi a mera “capacidade de receber representações, graças à maneira como somos afetados pelos objetos”, como queria Kant. Se os atuais meios de comunicação possibilitam uma outra experiência civilizatória, isto se dá, não porque eles sejam capazes de “instaurar” uma nova estrutura neurofisiológica de percepção, e sim porque desestabilizam e refazem a economia de equilíbrio entre as formas de ver, dize e agir vigente na modernidade, alterando profundamente o que chamamos nosso “meio ambiente”.

O sentido dos media

Marshall McLuhan – um pensador tão original quanto mal interpretado – advertia seus leitores quanto à insuficiência da simples contextualização histórica dos meios de comunicação para a compreensão apropriada de sua “natureza”, chamando sua atenção para o fato de que esse contexto é constituído e experimentado através desses próprios meios.

Ao invés de tentar compreender o sentido dos media analisando as “impressões” por eles provocadas ou seus “efeitos” sobre um ambiente estático, McLuhan propõe que se considere o próprio ambiente não como simples envoltório das ações humanas, e sim como um processo ativo, permanentemente submetido à intervenção de tecnologias que não seriam mais que extensões do homem. Tal abordagem permite-lhe estudar o papel dos novos meios a partir do tipo de envolvimento que eles promovem, provocando diferentes comportamentos e diferentes modos de atribuição de sentido e valor aos objetos e processos do mundo simbólico.

Descrevendo a ruptura das tecnologias elétricas em relação à seqüência linear típica da palavra impressa, ele sugere que a eletricidade não só permite um novo tipo de experiência simultânea e um novo conceito de simultaneidade, como realmente põe em xeque a universalidade do padrão de articulação causal que subjaz ao desdobramento da cadeia verbal. Este processo equivaleria, assim, à passagem “do mundo das seqüências e dos encadeamentos para o mundo das estruturas e das configurações criativas”, compensando o empobrecimento perceptivo provocado pela longa predominância da escrita fonética – responsável, segundo o autor, pela homogeneização dos códigos, pelo isolamento dos indivíduos e pela alteração do equilíbrio interno dos sentidos humanos, nitidamente caracterizada pela hipertrofia da visão no horizonte da galáxia de Gutenberg.

Além disso, ao afirmar que o “meio é a mensagem”, McLuhan mostra que o “conteúdo” de um meio é também um meio – e não uma “idéia” abstrata e desencarnada – e, o que é ainda mais importante, que cada meio comunica seu próprio funcionamento, de modo prático, através de procedimentos que não são apenas executados pelo usuário, mas reconstituem sua própria gestualidade.

Com isso, não pretendemos sugerir que a vida contemporânea nos empurre, a todos, para caótica experiência de um mundo de incerteza quântica, mas, ao contrário, que ela talvez possa redimensionar a nossa velha convicção de que a força de nossas certezas provisórias nasce mesmo de uma fonte remota, partilhada com outros homens de modo prático, simbólico e afetivo. Hoje assistimos a uma considerável expansão deste “solo ancestral” – que tão facilmente identificávamos com as tradições do nosso próprio grupo -, e o vemos deixar de ser o nosso único ponto de apoio para se entrelaçar com esse rico tecido formado pelo intenso movimento de semiose planetária – que cada vez mais se oferece como uma espécie de plasma audiovisual, às disposições autopoéticas dos elementos que florescem nas diferentes condições das mais diversas culturas.

Se existir, num sentido propriamente humano, consiste em transcender uma condição dada e projetar-se para além de “si”, essa abertura passa hoje pela rede semiótica própria da “cultura mediática”, pois só posso me abrir à articulação de um projeto diante de possibilidades que se apresentam a mim, não por estarem espacialmente “próximas”, mas por estarem presentes como alternativas de sentido disponíveis no horizonte temporal das minhas ações.

Uma real possibilidade existencial ultrapassa a meda condição de “coisa” dada e opaca, não está sitiada num “agora” pontual, isolado e irrepetível, mas me situa numa condição extática. Mergulho nela como ser historial que vai ao encontro de seu tempo próprio e este gesto atual só faz sentido porque meu presente virtualmente condensa o vigor de ter sido e a riqueza por vir. A experiência de existir, de ser-no-mundo coincide, pois, com a problemática aceitação desse paradoxo ou desse mistério da sedimentação do espaço e do tempo num sentido. Ela reúne o homem e o mundo, igualando-os como potências imaginantes que se correspondem num quiasma de força e forma, cuja reversibilidade se traduz continuadamente nesse movimento circular, estranhamente íntimo, pelo qual somos instados pelo ser – no que chamamos nossa experiência – e atendemos à instistente urgência de sua solicitação – através do movimento de expressão pelo qual lhe atribuímos um sentido.

Se uma reflexão sobre a existência, inspirada em autores como Heidegger e Merleau-Ponty, pode nos ensinar a conviver melhor com a nossa época – mostrando que “o tempo temporaliza” e revelando sua dinâmica própria como a articulação e a diferenciação latente do passado e do futuro no campo do presente, é porque nós já o havíamos compreendido, na prática – através do modo como experimentamos, sem sobressaltos, a contínua reconfiguração rítmica do tempo e do espaço, seja no universo de imagens plasmado pelo cinema, pela TV e pelas tecnologias digitais da atualidade, seja no âmbito da literatura e das belas artes – a música, a dança, o teatro, a poesia e as artes visuais (injustamente, as únicas a serem designadas como artes “plásticas”).

Já deveríamos, a essa altura, ter superado o velho temor de perder a “identidade” no confronto entre as nossas experiências diretas e imediatas e o fenômeno mediático, adivinhando que o caráter ativo e formativo da nossa sensibilidade não poderia, afinal, deixar de incidir também sobre as dimensões matriciais do tempo e do espaço.

Conceber, tratar e experimentar o espaço e o próprio tempo como matéria plástica: eis aí o horizonte que mal descortinamos e que a comunicação contemporânea nos oferece como a mais rica das possibilidades.

VALVERDE, Monclar. Experiência e comunicação. In: VALVERDE, Monclar. Estética da Comunicação. Salvador: Quarteto, 2007 (Item 5.1), p. 239-248.

Nenhum comentário:

Postar um comentário